terça-feira, 19 de maio de 2015

Emergência definidora

 Como seria se, em vez do exemplo de Cristo, nos defrontássemos com uma emergência definidora, como o anúncio de que um asteróide iria se chocar com a Terra?

 O espírito de Natal traz sentimentos de solidariedade e congraçamento universal, mas o espírito de Natal, como se sabe, dura uma semana. Como seria se, em vez do exemplo de Cristo, nos defrontássemos com uma emergência definidora, como o anúncio de que um asteróide iria se chocar com a Terra, e não houvesse nada a fazer para evitar o nosso fim? Como nos comportaríamos?

 Nos convenceríamos, finalmente, de que somos uma única espécie frágil num planeta precário e viveríamos nossos últimos anos em fraternidade e paz, ou reverteríamos ao nosso cerne básico e calhorda, agora sem qualquer disfarce? Nos tribalizaríamos ainda mais ou descobriríamos nossa humanidade comum, e como eram ridículas as nossas diferenças? Jogaríamos nosso dinheiro fora ou cataríamos o dinheiro que os outros jogassem fora pensando na remota possibilidade de comprar um lugar no último foguete a deixar a Terra antes do impacto?

 Perderíamos todo interesse nos prazeres da carne e trataríamos de salvar a nossa alma ou, pelo contrário, nos entregaríamos à lascívia, ao deboche e à gula, ultrapassando, às gargalhadas, todos os limites do cartão de crédito? Como os cientistas nos diriam até o segundo exato do choque com o asteróide com alguns anos de antecedência, seríamos a primeira geração sobre a Terra a viver com a certeza universal e pré-calculada do seu fim - e a última, claro.

 Muitas seitas através da História e até hoje estabeleceram a hora e o modo do Mundo acabar, e se prepararam para o evento. Nós seríamos os primeiros com evidência científica do fim em vez de crença, o que nos levaria a tratar a ciência como hoje muitos tratam as crenças. Pois só a desmoralização total da ciência, só chamar o sistema métrico de ocultismo e termodinâmica de feitiçaria, nos daria a esperança de que o asteróide, afinal, passaria longe. E se existissem foguetes salvadores e bases na Lua e em Marte esperando os sobreviventes, estaríamos diante de outra situação "Titanic". Quem vai nos foguetes? Tem que ser americano? Quanto custaria uma terceira classe? Aceitam cartão?

Luis Fernando Veríssimo
Disponível em: http://www.old.pernambuco.com/diario/2002/12/24/verissimo.html

domingo, 10 de maio de 2015

Mães (quase) sempre têm razão

Leve um agasalho, coma tudo, vá tomar banho, já é hora de dormir, diga por favor e obrigado, respeite os mais velhos, não bata no seu irmão, não converse com estranhos… Mães são os seres mais óbvios e necessários na repetição diária de tudo o que a gente sabe que precisa fazer, mas quer deixar pra depois.

Cansei de ouvir essas frases, no começo em árabe e depois em português. Tortura bilíngue… Como eu nem sempre obedecia, às vezes vinha a punição: ficar de castigo atrás da porta. Só que quando ia para lá cumpria a pena sem reclamar. Um dia, fiquei um tempão naquele cantinho e só fui descoberto na hora em que ela foi passar a enceradeira. Recebi um carinhoso “tadinho”, outra reação típica de mães duronas de coração mole.

Mas aos poucos você vai largando a mão dela na rua e começa a se libertar da obrigação de prestar atenção na ladainha e seguir todos os conselhos. É quando a gente acha que virou gente e já sabe de tudo aquilo.

Não sei exatamente qual foi a ordem da minha rebeldia. Acho que comecei descumprindo o “não converse com estranhos”. As crianças da rua tinham medo de um mendigo que ficava na praça. Eu também, mas a curiosidade superava o temor imposto pelos adultos e eu queria puxar papo com o sujeito. E sempre era reprimido pela superproteção ao bebê, tchu-tchu-quinho da mamãe.

Agasalho? Nunca fui friorento. Comer tudo? Beterraba não. Até hoje (blah). Arroz doce também não, pô! Banho? Ah, tinha uma hora que enchia o saco mesmo. Mas eu mudei nesse quesito, tá? Dois por dia, só pra deixar bem claro. E mamãe nem precisa mandar.

Dormir cedo? Isso sim. Quando eu chegava no dia seguinte sempre ia dormir cedo… Por favor e obrigado? Sou assim até hoje. Devo ser o orgulho dela, então. Respeitar os mais velhos? Tô dentro ainda, apesar de agora eu já ser o velho que “merece” respeito. Não bater no meu irmão? Só ficou a saudade dele, que se foi…

Mas meu grande ato de contestação foi o desejo de ir ao comício das Diretas-Já, em 1984. Já era “gente” e tinha 19 anos, caramba! Pois ela falou que não. O motivo? Era “perigoso”. Meu pai fez um p… discurso inflamado em defesa da democracia! Muito legal… Eu achando que estava liberado e veio um “mas respeita a sua mãe que ela tem razão”. E não fui…

Hoje, modestamente como pai, condição infinitamente inferior à de mãe, me vejo repetindo os mesmos trololós para a mocinha e o rapazinho lá de casa. Bem, sou agradecido por todos os conselhos e repreensões com que fui premiado e peço aos meus filhos: por favor, me desobedeçam de vez em quando…

E comecem, aos poucos, conversando com estranhos. Tomando cuidado, mas sem se proibir de conhecer gente bacana que aparece no seu caminho sem você saber o motivo. Eu vivo isso a cada dia e recomendo, com moderação… Moderação nada. É muito bom encontrar alguém nos “acasos” da vida e sentir que parece relação antiga, desde a infância. É tão inexplicável como coração de mãe.

É isso e pronto! Penso que todas as experiências devem ser vividas e bem aproveitadas. Quase todas… Beterraba e arroz doce não dá, né, mãe? Mães não se convencem dessas coisas…

HAISEM ABAKI
Por Haisem Abaki, publicado em 08 Maio 2015 | 14:20
Disponível em: http://sao-paulo.estadao.com.br/blogs/haisem-abaki/maes-quase-sempre-tem-razao/