quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

O bem dopado

Como um pequeno resfriado, o mal instalou-se em seu corpo sorrateiramente.
A garganta ardeu de leve após um jantar japonês de pés nus, sentiu o frio na ponta dos dedos, mas a fome não deixou que fosse apanhar as meias, que meias?, viera sem meias, sem cuecas tampouco, ou o sapato, mas sapatos não são permitidos aqui no tatame, ficam os pés frios, o excelente atum a derreter no esôfago é capaz de compensar o desequilíbrio, ele crê. Pois em casa a garganta ardeu, os seios da face preencheram-se do velho e renovado fluido, catarro, nome feio, porra. O homem tinha que estar forte para um grande evento no dia seguinte. Ao telefone, o clínico geral deu risada: faz um gargarejo com água e sal aí, Trimedal três vezes, tri.
Andou tomando, em farmácias de falácias, um mel com limão e própolis, medida concentrada, mas era de outra coisa que precisava: amor, e não havia amor naquele própolis, carinho talvez, mas o amor devia estar socado no fundo dalgum pilão velho, em rito de morte da felicidade, a farmacêutica atrás do balcão com as pupilas e as pílulas perdidas num céu qualquer com vapores de vodca ruim ou cerveja azeda.
O homem encheu-se de tudo. Cápsulas geriátricas Pharmaton, para tirar fadiga de velhinho, não a fadiga sexual, que de Viagra o homem não precisa, está até com tesão demais, mas neste dia público falta-lhe tônus, o ar não passa, é como se fosse morrer, querer morrer, melhor morrer, morrer melhora o mal, morrer é remédio para todas as dores, morrer é fruto dos melhores favores.
Mas não. Targifor C, dois duma vez, Trimedal e, por que não?, aquele Lexotan, que ninguém é de aço, o antidepressivo faz o estofo do espírito, e, na grande noite, caipiras de siriguela, cerveja gelada na garganta, e o ar úmido da noite do Rio.
Hoje o bem dopado homem escreve, descreve, a própria morte em vida. Morte vida.
Vida morta. Copenhague em desencanto.
Arruda pro ano que vem. Recesso nos tribunais, pra que recesso?, recesso o ano inteiro, recesso de grandeza, recesso de coragem, recesso de aragem, recesso de amor. Vem aí o ano novo, fodasefodase o homem dopado pensa, pororoca de fodasemhífen e sem por quê. 2010 vem aí, Copa, e daí?, eleição, quase um refrão, Dilmalulaserramarina, quem merece?, Brasil melhor é o que se quer, petróleo no oritimbó, Oriente merda, Ocidente indolente, e vamos lá que o Caneco é um repeteco de todas as efemérides das quais estamos com os respectivos sacos cheios, show no Canecão, é o cão.
Complicado é aturar o Reveilão. O velho revelho. Vai de branco? Vou de preto, celebrar aos pulos de arlequim o luto do mundo, a luta do Imundo, a fruta do nauseabundo, a bunda do defunto que colore as esquinas dos morros e dos asfaltos, os altos do Rio dos quais se vê nada além da inútil paisagem na passagem do transeunte, o desfrute do vazio em nossos peitos, o desrespeito pelos nossos despeitos, o desmando sem fim no ano que enfim.
Ah, cápsulas! Encapsulados estamos à espera de sabe-se-lá-o-quê. A garganta melhorou mas o bem dopado percebe que o mal é mais embaixo, buraco fundo, ferida antiga que, cada vez cutucada, sangra mais e não estanca, o homem queria uma estância, daquelas de tuberculosos, Hans Castorp, ficar lá até ter a certeza de que nada vai, nada vem, é só esperar o pneumotórax, pequeno raio-X guardado na carteira, souvenir que diz da morte, e depois dar umazinha com a doente sensual que também nunca vai sair de lá, o negativo da ferida no pulmão na cabeceira, fetiche da noite de Valpurgis.
O homem dopado sente o espírito entupido.
Existe Sorine para desentupir espírito? Ele olha pro violão, pro piano, que interesse têm esses amigos de cordas, de repente são apenas instrumentos, como é bom poder tocar um e fugir às insidiosas unhas da tigresa, qualquer hora eu volto a tocar, a cantar, subo a serra, Ibitipoca, vamos lá, esquecer a tumba que cá me acolhe com tanto calor e tanto amor, esta, eu tenho certeza, tumba, me ama, minha cama, a chama da minha vida, “amorteamo”, dizia um certo poeta, trocadilho definitivo, síntese de todos os impulsos.

(Por Arnaldo Bloch, edição de 19/12/2009)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Frase

"Quando o coração vence a batalha contra a razão, as portas para o mágico se abrem"


(Por Paulo Coelho, 30/12/2009)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Frase do dia

"O maior prazer de um homem inteligente é bancar o idiota diante do idiota que quer bancar o inteligente"


(por Confúcio)

domingo, 27 de dezembro de 2009

Nunca imaginei um dia...

Até alguns anos atrás, costumava dizer frases como “eu jamais vou fazer isso” ou “nem morta eu faço aquilo”, limitando minhas possibilidades de descoberta e emoção.
Não é fácil libertar-se do manual de instruções que nos autoimpomos. Às vezes, leva-se uma vida inteira, e nem assim conseguimos viabilizar esse projeto. Por sorte, minha ficha caiu a tempo.

Começou quando iniciei um relacionamento com alguém completamente diferente de mim, diferente a um ponto radical mesmo: ele, por si só, foi meu primeiro “nunca imaginei um dia”. Feitos para ficarem a dois planetas de distância um do outro. Mas o amor não respeita a lógica, e eu, que sempre me senti tão confortável num mundo planejado, inaugurei a instabilidade emocional na minha vida. Prendi a respiração e dei um belo mergulho.

A partir daí, comecei a fazer coisas que nunca havia feito. Mergulhar, aliás, foi uma delas. Sempre respeitosa com o mar e chata para molhar os cabelos, afundei em busca de tartarugas gigantes e peixes coloridos no mar de Fernando de Noronha. Traumatizada com cavalos (por causa de um equino que quase me levou ao chão quando eu tinha 8 anos de idade), participei da minha primeira cavalgada depois dos 40, em São Francisco de Paula. Roqueira convicta e avessa a pagode, assisti a um show do Zeca Pagodinho na Lapa.

Para ver o Ronaldo Fenômeno jogar ao vivo, me inflitrei na torcida do Olímpico num jogo entre Grêmio e Corinthians, mesmo sendo colorada. Meu paladar deixou de ser monótono: comecei a provar alimentos que nunca havia provado antes. E muitas outras coisas vetadas por causa do “medo do ridículo” receberam alvará de soltura. O ridículo deixou de existir na minha vida.

Não deixei de ser eu. Apenas abri o leque, me permitindo ser um “eu” mais amplo. E sinto que é um caminho sem volta.

Um mês atrás participei de outro capítulo da série “Nunca imaginei um dia”. Viajei numa excursão, eu que sempre rejeitei essa modalidade turística. Sigo preferindo viajar a dois ou sozinha, mas foi uma experiência fascinante, ainda mais que a viagem não tinha como destino um país do circuito Elizabeth Arden (Paris-Londres-NovaYork), mas um país africano, muçulmano e desértico. Aliás, o deserto de Atacama, no Chile, será meu provável “nunca imaginei um dia” de 2010.

E agora cometi a loucura jamais pensada, a insanidade que nunca me permiti, o ato que me faria merecer uma camisa de força: eu, que nunca me comovi com bichos de estimação, adotei um gato de rua. Pode colocar a culpa no espírito natalino: trouxe um bichano de três meses pra casa, surpreendendo minhas filhas, que já haviam se acostumado com a ideia de ter uma mãe sem coração. E o que mais me estarrece: estou apaixonada por ele.

Ainda há muitas experiências a conferir: fazer compras pela internet, andar num balão, cozinhar dignamente, me tatuar, ler livros pelo Kindle, viajar de navio e mais umas 400 coisas que nunca imaginei fazer um dia, mas que já não duvido. Pois tem essa também: deixei de ser tão cética.

Já que é improvável que 2010 seja diferente de qualquer outro ano, que a novidade sejamos nós.

(por Martha Medeiros, rev.O Globo, pág. 22, edição de 27/dez/2009)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Natal é amor

Uma das coisas mais aflitivas para um colunista é escrever sobre o Natal. Por quê? Porque não há tanto assim a dizer sobre Natal, não é um assunto que estimule a imaginação, que permita desenvolver um novo enfoque a respeito, não é um acontecimento que surpreenda.
Nada é menos surpreendente do que o Natal. É a repetição instituída, a paz louvada anualmente, a certeza de que o mundo pode explodir lá fora, mas o Natal estará a salvo, assim como o jingle bell, a árvore enfeitada com bolinhas, o peru, os presentes, a missa do galo e o ho-ho-ho do Papai Noel. Pode um colunista corromper essa felicidade? Pode, mas não deveria.

Essa introdução não é para recomendar que tirem as crianças da sala. Não vou corromper nada, mas é bem verdade que pretendo falar de amor de um jeito enviesado. Vou comentar sobre o papel do Natal nas separações, ainda mais agora que o divórcio ficou facilitado por lei.

Lembro que uma amiga minha e o marido decidiram se separar numa linda noite estrelada de novembro, e a primeira providência foi manter tudo como estava até que passasse o Natal. Bem pensado. Não havia razão para entristecer as crianças na véspera de uma data tão significativa. Natal é amor e família reunida, por que estragar o encanto? Tiveram sua noite feliz. Felicíssima.

Em agosto passado, uma outra amiga me confidenciou que estava se divorciando. Lamentei por eles, ofereci ombro, aquela coisa toda, e aí ela me contou que iriam esperar passar o Natal para contar ao filho e se separarem de fato. Espera aí: seriam quatro meses até o Natal. E o filho tem 19 anos.

Fiquei pensando que essa história de “esperar o Natal” é o último prazo para mudar de ideia. Separar-se é uma atitude tão radical, tão difícil e tão protelada, que o Natal virou uma saída: o casal põe os pingos nos is, diz que nunca mais, que terminou, porém, sem certeza absoluta do que está fazendo, estabelece que a separação, por enquanto, vai ficar secreta, até que a passagem do Natal libere cada um para seguir nova vida. Até lá, serão diplomáticos e honrarão as aparências, ou seja: para que os filhos não reparem, continuarão a dormir no mesmo quarto e a ser gentis um com o outro. E descobrem-se gentis como nunca foram.

Não duvide: em abril algum casal sentará na sala para ter aquela conversa difícil e definitiva, e depois de pesarem prós e contras, fazerem acusações mútuas e concluírem que não dá mais, irão dormir chorando e, no dia seguinte, avisarão parentes e amigos que o casamento acabou. Aí é só dar um tempo para procurar outro apartamento e se acostumar com a ideia. Enquanto isso, a folhinha do calendário passará por maio, junho, julho e, chegando em agosto, ora, nada mais sensato do que esperar as festas de fim de ano.

O Natal é o maior aliado dos casais indecisos

(Por Martha Medeiros, revista O Globo, página 64, edição de 20/dez/2009)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O melhor e o pior do verão

"Você está experimentando um biquíni dentro de um cubículo e se achando uma orca, então dá uma viradinha e descobre que foi atacada por um bando de celulites selvagens"

O melhor: Colocar qualquer vestido, uma rasteirinha e ficar absolutamente encantadora.
Morar num país que tem um litoral com cerca de oito mil quilômetros de extensão.
Feriadão de carnaval (fugir do ziriguidum ou cair no samba, a escolher).

O pior: Experimentar biquíni em loja. Você entra num cubículo asfixiante com um espelho inimigo: impossível não se achar uma orca, e isso nem é o pior. O pior vem depois.

O melhor: Caipirinha, cerveja, champanhe.
Bicicleta, bermuda, chinelo de dedo.
Piscina, rabo-de-cavalo, água de coco.

O pior: Você está dentro de um cubículo asfixiante, experimentando um biquíni que serviria numa criança de 7 anos e está se achando uma orca, e então dá uma viradinha e descobre que foi atacada por um bando de celulites selvagens.

O melhor: Ar-condicionado funcionando.
Óculos escuros e sorrisos iluminados.
Dias mais compridos e noites estreladas.

O pior: Além de estar se sentindo uma orca e estar tomada por celulite não só nas pernas, mas também nos braços, a barriga resolveu cair por cima da calcinha. Péssima notícia para quem gosta de estender a canga na areia para deitar de costas. Nem que seja por meio segundo, você vai ter que ficar de quatro antes de se deitar. Seja rápida.

O melhor: Aquele seu amigo que vive mandando arquivos .pps e piadinhas pela internet está de férias numa pousada em Macapá que não tem computador.
Você sente menos fome.
A pele fica naturalmente bronzeada.

O pior: A cortininha do provador não fecha até o fim, e a atual mulher do seu ex-marido acaba de entrar na loja com seu corpinho de 1,74m e 53 quilos. E ela viu você. E abriu a cortina pra te dar um oi, a desqualificada.

O melhor: Tem um homem lindo esperando você na porta da loja, que por acaso é seu namorado e não dá a mínima para celulite e barriguinha, está mais interessado em dar muitos mergulhos, muitos beijos e curtir a natureza ao seu lado. Aí você lembra por que se separou — seu ex-marido odiava praia, odiava sol e odiava a vida, e então você cumprimenta a desqualificada com um sorriso iluminado e leva o biquíni.

(por Martha Medeiros, pág. 52, Revista O Globo, 06/dez/2009)