terça-feira, 14 de abril de 2009

O amor que a vida traz

"E agora está você aí, com esse amor que não estava nos planos. Um amor que não é a sua cara, que não lembra em nada o amor solicitado. E, por isso mesmo, um amor que deixa você em pânico e em êxtase"

Você gostaria de ter um amor que fosse estável, divertido e fácil. O objeto desse amor nem precisaria ser muito bonito, nem rico.

Uma pessoa bacana, que te adorasse e fosse parceira já estaria mais do que bom. Você quer um amor assim. É pedir muito? Ora, você está sendo até modesto.

O problema é que todos imaginam um amor a seu modo, um amor cheio de pré-requisitos.

Ao analisar o currículo do candidato, alguns itens de fábrica não podem faltar. O seu amor tem que gostar um pouco de cinema, nem que seja pra assistir em casa, no DVD. E seria bom que gostasse dos seus amigos. E precisa ter um emprego seguro. Bom humor, sim, bom humor não pode faltar. Não é querer demais, é? Ninguém está pedindo um piloto de Fórmula 1 ou uma capa da “Playboy”. Basta um amor desses fabricados em série, não pode ser tão impossível.

Aí a vida bate à sua porta e entrega um amor que não tem nada a ver com o que você queria. Será que se enganou de endereço? Não. Está tudo certinho, confira o protocolo.

Esse é o amor que lhe cabe. É seu. Se não gostar, pode colocar no lixo, pode passar adiante, faça o que quiser. A entrega está feita, assine aqui, adeus.

E agora está você aí, com esse amor que não estava nos planos. Um amor que não é a sua cara, que não lembra em nada o amor solicitado.

E, por isso mesmo, um amor que deixa você em pânico e em êxtase. Tudo diferente do que você um dia supôs, um amor que te perturba e te exige, que não aceita as regras que você estipulou. Um amor que a cada manhã faz você pensar que de hoje não passa, mas a noite chega e esse amor perdura, um amor movido por discussões que você não esperava enfrentar e por beijos para os quais nem imaginava ter tanto fôlego. Um amor errado como aqueles que dizem que devemos aproveitar enquanto não encontramos o certo, e o certo era aquele outro que você havia encomendado, mas a vida, que é péssima em atender pedidos, lhe trouxe esse e conformese, saboreie esse presente, esse suspense, esse nonsense, esse amor que você desconfia que nem lhe pertence. Aquele amor em formato de coração, amor com licor, amor de caixinha, não apareceu. Olhe pra você vivendo esse amor a granel, esse amor escarcéu, não era bem isso que você desejava, mas é o amor que lhe foi destinado, o amor que começou por telefone, o amor que começou pela internet, que esbarrou em você no elevador, o amor que era pra não vingar e virou compromisso, olha você tendo que explicar o que não se explica, você nunca havia se dado conta de que amor não se pede, não se especifica, não se experimenta em loja — ah, este me serviu direitinho! Aquele amor discretinho por você tão sonhado vai parar na porta de alguém para o qual um amor discretinho costuma ser desprezado, repare em como a vida é astuciosa. Assim são as entregas de amor, todas como se viessem num caminhão da sorte, uma promoção de domingo, um prêmio buzinando lá fora, mesmo você nunca tendo apostado. Aquele amor que você encomendou não veio, parabéns! Aproveite o que lhe foi entregue por sorteio.

(por Martha Medeiros, 12/abril/2009, pág.22)

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Domingo de Páscoa

"Ovos de chocolate escondidos no jardim e a família à mesa em volta de uma bacalhoada não fazem parte das minhas lembranças remotas. Natal, sim"

Tive uma educação, digamos assim, ecumênica.

Fiz o primário em colégio leigo, cursei o ginásio numa escola católica e completei o científico num instituto protestante.

E, se tem alguém aí do lado que não sabe o que é primário, ginásio e científico, que pergunte para o seu avô, que deve regular comigo de idade.

No científico, entre a primeira e a segunda aulas, todas as turmas se reuniam num auditório onde, durante o que era chamado de “assembleia”, pastores pregavam sua fé lendo trechos do Novo Testamento. Eu aproveitava para completar o sono interrompido para estar na escola às sete da manhã. No primário, nem sabia que em algumas instituições havia aulas de religião.

No ginásio, aí, sim, os irmãos maristas me pegaram de jeito.

Devo ter sido o pré-adolescente mais carola de toda a história da carolice nacional.

Aos domingos, não perdia uma missa das seis na Igreja de São Judas Tadeu (estou falando de um tempo em que morava em São Paulo). Era imbatível no concurso anual de redação sobre a vida do padre Marcelino Champagnat. Durante a Quaresma, era o único da família que não comia carne às sexta-feiras... quer dizer, único, não. Do Rio, pelo telefone, minha vó, uma carola de velha cepa, controlava minhas tentações.

Confessava uma vez por semana, comungava todos os domingos e respeitava os feriados santos. Mas, por uma estranha razão, não consigo me lembrar de festejos lá em casa no Domingo de Páscoa.

Ovos de chocolate escondidos no jardim e a família à mesa em volta de uma bacalhoada não fazem parte das minhas lembranças remotas. Natal, sim. O Natal lá em casa durava quase um mês, se contarmos o período entre o começo dos preparativos e a orgia gastronômica e etílica que culminava na noite de 24 de dezembro. Mas os Xexéos, definitivamente, não se ligavam na Páscoa.

E foi assim por um bom tempo. Até que, quando eu já era um adulto barbado, meu pai adquiriu uma obsessão: me presentear, todos os anos, com um ovo de Páscoa. Não tinha para mais ninguém. Ele não comprava ovos para os netos, para os bisnetos, nem para os outros filhos. Achava que eles já tinham de quem ganhar. Mas eu, não. Ele supria essa falta. E eu passei a comemorar a Páscoa, com o ovo de chocolate de meu pai, até ele morrer. Não tive tempo de sentir muita falta. Na primeira Páscoa sem meu pai, minha mãe apareceu lá em casa. E foi direto para a cozinha preparar um arroz de bacalhau.

A receita não era complicada: arroz, bacalhau desfiado, ovos mexidos, azeitonas, salsinha, batatas fritas de pacote e muito azeite. Era só misturar tudo. Ela cozinhava aquilo com a compenetração de quem estava mantendo uma tradição secular. E eu passei a comemorar a Páscoa, com o arroz de bacalhau de minha mãe, até ela morrer.

E agora eu mantenho a tradição. Hoje, lá em casa, vai ter chocolate, que eu mesmo compro, e o arroz de bacalhau, que eu mesmo faço. É um jeito de conciliar a data com as saudades de meus pais. Boa Páscoa!

(por Artur Xexéo, 12/abril/2009, pág.50)